Com escrita segura e impecável, este livro desvenda o projeto político-ideológico do jornal O Clarim da Alvorada e do universo negro de São Paulo nos primeiras décadas do século XX. Sem ceder à tentação tão comum de idealizar os atores estudados, o autor aponta as tensões e oscilações presentes no discurso do jornal, recuperando com muita competência as múltiplas identidades negras imaginadas pelos editores em diálogo com a imprensa negra dos EUA.
Ao longo do texto, o historiador demonstra como foi possível conciliar a identidade brasileira com uma identidade negra transnacional, a despeito dos projetos dos interlocutores estadunidenses serem tão diversos e mesmo antagônicos aos do Clarim. O autor explora muito bem o processo de seleção e recepção criativa pelo jornal paulista das notícias da imprensa negra dos EUA e a posterior associação e aplicação de determinadas ideias ao contexto brasileiro.
O caso de O Clarim da Alvorada é ilustrativo das redes intelectuais e políticas construídas no espaço do Atlântico negro e demonstra que, muito antes do momento áureo do movimento pelos direitos civis nas décadas de 1950 e 1960, as notícias das lutas nos EUA impactaram o movimento negro no Brasil, contribuindo inclusive para uma posição mais contundente do jornal em relação à situação à situação do negro brasileiro. Outra contribuição importante do trabalho foi apontar quais os intelectuais negros que apoiaram a ideia da democracia racial nas primeiras décadas do século XX no Brasil. Ao mesmo tempo que, nos EUA, os mitos de progresso e civilização também foram mobilizados no discurso dos negros em relação à África. Flávio Francisco descortina, assim, um trânsito simbólico e cultural extremamente complexo, que atravessa fronteiras nacionais e raciais.